ANÁLISE DA MÚSICA ADMIRÁVEL GADO NOVO
Os discursos não podem ser dissociados da prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis pré estabelecidos. Foucault
Com uma crítica social muito intensa
devido ao tolhimento da democracia e a imposição da censura desmedida, através
de seus versos e com uma voz singular, gutural e com uma melódica marcante, Zé
Ramalho compôs, entre outras canções, Admirável Gado Novo.
Essa canção é pautada de uma linguagem metaforizada foi composta para tecer críticas ao regime de exceção imposto no Brasil durante o Regime Militar, foi inspirada no livro, Admirável Mundo Novo, uma obra futurista de Aldous Huxley, produzida em 1932 que fala da alienação e do controle do Estado sobre as pessoas. Vejamos abaixo um excerto do livro:
Atualmente, tal é o progresso, os
velhos trabalham, os velhos copulam, os velhos não têm um momento de ócio para
furtar ao prazer, nem um minuto para se sentarem e pensar... ou se, alguma vez
por um acaso infeliz um abismo de tempo se abrir na substância sólida de suas
distrações sempre haverá o soma, o delicioso soma, meio grama para um descanso de
meio dia, um grama para um fim de semana, dois gramas para uma excursão para o
esplêndido Oriente, três para uma sombria eternidade na lua; de onde, ao
retornarem, se encontrarão na outra margem do abismo, em segurança na terra
firme das distrações e do trabalho cotidiano, correndo de um cinema sensível a
outro, de uma mulher pneumática a outra. (HUXLEY, 1997, p. 62).
Nessa assertiva, “soma” na obra de Huxley é uma droga utilizada pelo Estado governado por governo único, como forma tranquilizar e disciplinar os cidadãos que eram programados para desempenhar papéis sociais já pré-determinados, sem questioná-los em prol da manutenção da ordem e do bem coletivo. Esses sujeitos eram pré-programados através de doping coletivo visando a obtenção de uma sociedade perfeita. Acrescenta-se a isso o poder dos meios de comunicação em alienar o povo. Em uma parte da obra temos o seguinte fragmento:
Estou muito contente por não ser uma
Ípsilon - observou Lenina com convicção.
- E se você fosse uma Ípsilon -
retorquiu Henry - o seu condicionamento a deixaria não menos satisfeita por não
ser uma Beta ou uma Alfa. [...]
- Sim, agora todos são felizes - ecoou
Lenina. Tinham ouvido essas palavras repetidas cem vezes por noite, durante
doze anos. (HUXLEY, 1997, p. 76).
Nessa outra passagem da obra vemos que a sociedade era dividida em classes pré- planejadas e as pessoas deveriam aceitar a sua condição de modo feliz, em nome da ordem estabelecida. Daí a referência ao período militar nos versos do refrão da música: povo marcado, povo feliz. Uma alusão direta a repressão imposta pelos militares em nosso país.
A troca dos verbetes mundo (título do livro) por gado (título da música) não é apenas uma redução social. Ela tem como objetivo fazer um paralelismo entre o povo marcado e o gado. Estes são estão na condição de domínio, manipulação, exploração, submissão e conformismo. O gado pela sua condição de animal, o povo brasileiro, tal qual o gado é guiado e ordenhado pelo Estado opressor que o controla e o subjuga. Marcado também pode ser entendido como a dificuldade de expressão da sua dor diante as situação de submissão. Conformismo diante da crença que esse Estado poderá resolver os problemas vigentes no país. A manipulação através da propaganda ideológica que usava o futebol, o carnaval, o automobilismo como símbolo de um Brasil grandioso, sendo, pois uma felicidade alienada que explorava corações e mentes do povo brasileiro.
Vocês que fazem parte dessa
massa- O verso inicial da primeira estrofe faz referência a ideia ao povo
brasileiro visto de maneira uniforme devido a sujeição coletiva imposta pela
ditadura.
Que passa
nos projetos do futuro… Está
relacionado com a ideia de povo (massa) que era submetido a massificação e a
uniformização dos padrões sociais, políticos e econômicos. E também faz alusão
que as promessas do regime (projetos) não se efetivarão, permanecendo a dura
realidade de milhões de brasileiros.
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que
receber.
A individualidade do ser é
suprimida em favor do ideal coletivo (conforme se observa no livro) proposto
pelo regime: segurança e desenvolvimento. Abdicar dessa individualidade
contribuiria para o bem da nação como ideal patriótico, do qual não é sensato
se contrapor a esse projeto. É uma crítica contundente ao poder estabelecido
que manipula através de subterfúgios para manobrar as massas. Mas é também um
chamado à reflexão sobre a situação pela a qual se vive: a perda de direitos, a
opressão e a exploração sobre a qual não se deve negligenciar. É, portanto, um
clamor à resistência contra tudo que nos oprime. É uma insurgência a tudo o que
está estabelecido (como em Huxley):
um povo alienado sem vez e nem voz.
e ter que demonstrar sua coragem, à margem do
que possa parecer – está relacionado
à condição de opressão imposta pelo regime e a coragem dessa massa em suportar
tal condição e não desistir de oferecer resistência diante da situação adversa,
ou seja, se fazer se ouvida.
Nos versos, e ver que toda essa engrenagem
já sente a ferrugem lhe comer temos
uma crítica novamente e direta ao regime militar visto que o seu caráter
opressor e despótico resultaria em diversas formas de resistência (a ferrugem
contra a engrenagem do regime) e de lutas da população que não cessaria.
Lá
fora faz um tempo confortável, a vigilância cuida do normal
- Como poderia ser confortável viver sob um
regime que vigiava de todos os modos as pessoas. Eis ai o tom de ironia do
artista. O tempo confortável diz respeito a situação das pessoas que devem
realizar suas tarefas diárias, seu trabalho, seu cotidiano (o lá fora) de uma
maneira normal. o normal é também uma forma de denunciar o quanto o povo
estavam sendo vigiado pelo sistema.
Os
automóveis ouvem as notícias – Trata-se de
uma figura de linguagem denominada de prosopopeia em que seres inanimados
assumem características humanas, nesse caso o automóvel. A utilização da figura
refere-se à condição das pessoas serem tal qual os automóveis: seres autômatos
diante da realidade e sua condição de passividade. Uma condição de apatia, torpor, lembrando
seres autômatos, impassíveis. Os homens a publicam no jornal. Temos
nesse verso a clara demonstração da atuação dos censores (os homens) nos meios
de comunicação do país (simbolizado pelo jornal). Em outras palavras, uma mídia
que cumpre o papel determinado pelo Estado opressor e que está a serviço deste.
E correm através da madrugada,
A única velhice que chegou;
Demoram-se na beira da estrada
E passam a contar o que sobrou.
O povo foge da ignorância, apesar de viver tão
perto dela.
Aqui temos uma referência ao uso da conquista do
tricampeonato de futebol em 1970, no México. Tal acontecimento foi amplamente
utilizado como propaganda pelo governo e contribuiu para criar uma imagem de
êxito dos governos militares. Zé Ramalho vê esse episódio como alienante que
desviava a atenção dos problemas realmente graves que ocorriam no país.
Com a mídia sob a tutela do Estado era fácil
para os militares aliciar as massas em prol do seus ideais. Daí a crítica do
cantor: um povo que foge da ignorância mas vive tão perto dela.
E sonham com melhores tempos idos,
contemplam essa vida numa cela,
aqui neste verso lembra que a população almejava
viver com liberdade como em outros momento da história do Brasil. Por isso a
referência ao sonho. Já o segundo verso diz que o Estado mesmo cerceando a
liberdade do povo (cela), alimentava o assujeitamento da população, contribuía
para a sua letargia, hibernação, conformação e inoperância diante da realidade vivida,
preso ao sistema e manipulado por ele tal qual o gado do curral do refrão da
música.
E esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar – temos aqui crítica a passividade e a acomodação dos
brasileiros que ansiavam por mudanças de ordem político-social mas que pouco
faziam diante da situação. Estava dado ai um alerta para os que esperavam uma
nova possibilidade de que era preciso fazer algo.
A Arca de Noé, o dirigível
Não voam nem se podem flutuar. Aqui temos uma menção aos versos anteriores que se
referem ao mundo se acabar, ou seja, o fim da ditadura. Uma dessas
possibilidades poderia estar presente na crença religiosa dos brasileiros
através do cristianismo, pois Deus mandou Noé construir a arca para salvar
todos os animais do planeta. Dessa
forma, Zé Ramalho expõe a ideia de que a mudança da situação política do Brasil
não estaria no aspecto religioso, não resultaria apenas da fé, mas de uma
tomada de ação da sociedade, concreta, real.
Manoel Mosilânio Malaquias da Cruz (Pixote
Cruz)
Historiador
(URCA), Pedagogo (URCA), Graduado em Mídias da Educação (MEC) Especialista em
Mídias da Educação(UFC), em Educação e Direitos Humanos (UFC); em Análise
Transacional (Academia do Futuro) e em Metodologia do ensino Superior (UNICAP).
Pesquisador sobre Música Brasileira e Tutor do Projeto Professor Aprendiz da
SEDUC- FUNCAP na área de Ciências Humanas. Professor de Graduação e Pós-
Graduação da Faculdade FACEN. Professor da Rede Privada e Pública Estadual de
Brejo Santo-Ce, e do Curso Sapiento. (Salgueiro – Pe)
Especialista e Consultor
Educacionais das Matrizes Curriculares e dos Parâmetros Curriculares Nacionais
e da prova do ENEM
Acesse o canal ENEM TOMARA 2017.
FONTES CONSULTADAS
ALDOUS.
Admirável Mundo Novo. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Divulgação
do Livro, 1968.
BELTRÃO,
Petrônio Fernandes. insurgência, visionarismo e nordestinidade: marcas
identitárias do sujeito-poeta-cantor zé ramalho
VAMOS SE DEDICAR PARA O ENEM
(Uncisal 2012) Observe o trecho da música
“Admirável Gado Novo”, de Zé Ramalho, e perceba que sua análise pode nos levar
a discutir o conceito de alienação. O povo foge da ignorância Apesar de viver
tão perto dela E sonha com melhores tempos idos Contemplam essa vida numa
cela... Espera nova possibilidade De ver este mundo se acabar A Arca de Noé, o
dirigível Não voam nem se pode flutuar Seguindo o pensamento de Karl Marx,
veremos que a alienação se dá em uma situação determinada que gera toda uma
gama de desdobramentos e consequências. Tal situação ocorre na esfera
a)
religiosa, por meio das concepções escatológicas.
b) cientifica, com a ampliação do
conhecimento.
c) política, por meio da organização
partidária.
d) cultural,
com o avanço da cultura de massa.
e)
produtiva, a partir das relações de produção.
Resposta:[E]
Ainda que cause
efeitos em todas as esferas da vida social, a alienação é produto das relações
de produção que ocorrem ao interno do sistema
capitalista. Sua origem se dá na medida em que o trabalhador produz uma mercadoria,
mas que lhe é destituída, passando para as mãos do burguês. Assim, o
trabalhador não pode se satisfazer enquanto ser humano e se torna um indivíduo
alienado. Os créditos do comentário da questão são de responsabilidade do link
abaixo.